Talentosos, perfeitos, bonitos, cheirosos, charmosos e modestos:

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Centro-Oeste mestiço

Morria de medo o tal José de Santo Cristo. Ele viu seu primo partindo, o corpo esguio sumindo no meio do verde da fazenda, se embolando com o sol e com o horizonte. Preferiu o marasmo, preferiu o fugere urbem, mesmo que nunca tivesse pisado num asfalto. Tinha sua terrinha, tinha sua vaquinha malhada, e aquilo lhe bastava. 
Íntegro, nem quando a tuberculose lhe assolou deixou de ir às missas. Foram-lhe tiradas a inocência e a pureza divina somente na lua-de-mel. O próprio pároco lhe pedia conselhos, via-o como exemplo. Da Vinci desenhou somente o corpo do homem perfeito; porém, se fosse possível transpor caráter para o papel, José posaria sem delongas.
Ouviu dizer que seu primo se envolvera com atividades que não condiziam com o tipo de criação que haviam tido no campo. Casto, correto, nunca botara fé no primo - o delinquente, degenerado da família Santo Cristo. Seu travesseiro era testemunha do quanto pediu a Deus que iluminasse o familiar, que na capital arriscava a vida.
Viveu como se fosse viver pra sempre, nunca com pressa, sempre com aquele o enrugado sorriso que iluminava as ventas. Viu filho nascer, viu filho morrer, viu-se morrendo, também. Padeceu de velhice. Desencarnou e não ganhou festa na fazenda, nem bandeirinhas, povo a aplaudir, sorveteiro, muito menos câmeras de TV. Morreu como viveu: sem aventuras. Não fez mais do que plantar alface. José de Santo Cristo não virou música, José de Santo Cristo virou adubo.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Títulos também não são necessários

Danem-se o mundo gramatical, o dicionário, as orações! Nada é realmente necessário para a compreensão nesse antro de códigos. O olho no olho, o corpo no corpo, o pensamento e a telepatia: isso, de fato, faz o globo girar, não o jornal. Ouso ser melhor que Marinetti!
Podemos começar, então, a excluir o que trava, o que impede: o infeliz ponto final o ponto final é a coisa mais detestável possível! Pior que ele, talvez, somente a exclamação argh, eu tenho que sinalizar minha empolgação? e a dúvida também, meu Deus e que porcaria de maiúsculas deixem-me escrever brasil, atântico, zé das couves ah, chega de vírgulas capachas do ponto final morram os acentos nao preciso de silaba tonica se eu nao tiver que codificar chegadeespaçosvamosacabarcomasletr

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Musicismo

Da música sai todo o som
dos acordes, da clave, do tom
da avenida, da vida, então.

Na música se acha a chave
da escala, da pausa, da clave
do sentir o sentir mais suave.

Vem num canto gregoriano
com voz, violino, piano
Já sabendo até que a última rima
canta um nome cotidiano.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Manifesto Zacaria

Queremos ser Zacaria. Queremos ter Zacaria. Queremos Zacariar.
***
Vamos nos encher de anglicismos para afirmar nosso Zacariaway to Heaven, pois nosso modo de vida tem que ser Zacaria, e nosso Zacaria tem que levar ao céu. Em inglês, sim, porque vamos de Apollo 11 - não importa se verdadeiramente ou não - chegar ao objetivo-mor, dando um grande passo para a humanidade. A humanidade precisa de Zacaria, a humanidade precisa de prosa, verso, acorde e coreografia, todos dançando, cantando e recitando a ideia.
***
Ser Zacaria é observar uma andorinha num abutre e uma suculenta maçã numa mamona.
Ser Zacaria é abraçar o mendigo e beijar o leproso.
Ser Zacaria é correr pela Arcádia, nu, e se cobrir de palmeiras e dentes-de-leão.
Ser Zacaria é jogar capoeira com um japonês e comer acarajé de hashi.
Ser Zacaria é abrir a mente para o mundo e destroçar caminhos traçados.
***
All we are saying is give Zacaria a chance.
Zacaria, Zacaria, über niemand in der Welt.
Allons enfants du monde, le jour de Zacaria est arrivé.
***
Zacaria é fruta colhida do pé
Zacaria é amor da mãe para o filho
Zacaria é razão untada em fé
Zacaria é abraço cantando estribilho
Zacaria é rico lembrar que é Zé
Zacaria é trem que não sai do trilho.
Zacaria é ir até que acabe o brilho, que suba a maré, que aperte o gatilho, o mundo acabar.
Queremos ser Zacaria. Queremos ter Zacaria. Queremos Zacariar.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Se as chinelas

Se suas chinelas falassem...
Ah, que bobagem!
Que mais contariam
Senão que sorriam
Quando tu as calçava?

Se suas chinelas andassem...
Ah, que bobagem!
Aonde mais iriam
Se nem mesmo saíam
Da sua morada?

Se suas chinelas amassem...
Ah, que bobagem!
Pra quê chorariam
Às vezes morreriam
De boca calada?

terça-feira, 3 de abril de 2012

Devaneios de um cubano cubista

Vi    Vi uns caras em trapos sentados no chão
umas     pedindo clemência e uns trocados pro
e outras    pão. E é pão ruim que o diabo veio
coisas quando   não mais de vermelho só pra
fui dar umas voinetas    amassar. Vi gente de pé
com toda a família    terno e gravata bufando
lá pelos EUA -    correndo gritando achando:
terra doida    acaba o mundo. Fidel nos acuda 
que lá    Que correria meu Che para que isso
é    tudo? Seria absurdo ser desses em Cuba

segunda-feira, 19 de março de 2012

Bocha

Era 15 de julho de 1975. A Alemanha estava em festa: final da Copa do Mundo de Bocha! Alemanha Ocidental de um lado, Alemanha Oriental do outro. Os comunas gritavam vitória antes do jogo, agradecendo a Lênin por abençoar seus jogadores bolcheviques. Os capitas, do outro lado, tomavam Coca-Cola e gritavam 'já ganhou' (gewonnen haben!). De fato, a festa estava linda. De Schleswig a Baden-Baden, cornetas, apitos e bandeiras espalhavam-se pelas ruas. Não fosse o muro, uma Guerra Civil tomaria Berlim.
O amor à pátria ideológica tomava por completo os germânicos, que agora não mais queriam saber de seu espaço vital, mas, sim, de alçar o espaço na história dos torneios de bocha.
A partida, disputada na Suíça - ai, Suíça, será que você vai ser sempre neutra? - começou às 16h, horário de Berlim Ocidental, e às 16h, horário de Berlim Oriental. Os vermelhos começaram com a bola. Alçada em direção ao alvo, o técnico soviético contava as revoluções da pelota. Vendo a boa pontuação dos rivais, os direitistas olhavam com inveja. Porém, logo deram o troco, alcançando ótima pontuação e ainda dando uns passinhos de vantagem. 
O jogo foi equilibrado até o final. Era ponto lá, ponto cá. Valha-me, São Trotsky! Acuda-me, São McCarthy! Num clima de Crise dos Mísseis, o mundo esperava por algo bombástico. 
Na última jogada, os Ocidentais conseguiram o empate. Pelas leis do bocha de 1975, a partida seria disputada  pelo cara-ou-coroa. Ih! Aí começou a confusão! Os esquerdistas não aceitaram sucumbir à logica capitalista de basear suas vitórias, ações e decisões a partir de uma moeda. Os direitistas, por sua vez, argumentavam que só jogariam se fosse uma moeda de cent de dólar. Assim, a selvageria generalizou-se: era como a luta de Rocky Balboa e Ivan Drago, mas com dez pessoas de cada lado representando cada um da dupla. Lá em Berlim, o muro não aguentou: os alemães derrubaram a barreira, e nenhum germânico passou aquele dia sem levar um pontapé que fosse. 
O resultado: quinze mil mortos e sessenta mil feridos. As duas equipes foram desclassificadas, e o título caiu nas mãos do Brasil. Tragicômico, não? E o governo Geisel ainda usou isso como propaganda política. 
Agora vê se pode! Aquela taça de bocha de 1975 foi uma hecatombe esquecida pela História. Aliás, esquecida por todos. Quando eu conto, ninguém acredita. Poxa, sou eu lá de inventar essa qualidade de lorota?

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Píramo e Tisbe

Mais fácil a morte, angústia de quem vive, ser a solução para quem ama. Se quem amas jaz agarrado a eterna fonte de cordas e laços dos mais fortes e habilidosos marujos e suas mãos calejadas, há que unir um dia, sem mais rios, lagos, mares de dor, a um só lugar, a todo momento, a todo sorriso e vontade, um par. Que não haja, pois, outra que espante ou outro que lhos queira mal, somente um tenro e sonoro valsete que embale a eternidade subterrena e supravital, a três por quatro passadas e suspiros, respectivamente. Seja imponente o que deveras sempre o foi, porém subestimado por almas pretas e encarniçadas, tingidas da mais fajuta cal. Debalde foi a luta para hermeticamente deixar deslocado dois polos visivelmente atraídos, afinal, os amantes babilônios separados pela parede hora encontrar-se-ão sob a árvore de frutos brancos, que vermelhos serão depois, demostrando aos errantes o sempre estampado na tez, solenemente ignorado e jogado de lado. Daí, então, suplicarão moço e moça por compaixão do nazareno; todavia, rejeitará o Cristo: estaria, ali, o que ele pregou, mas perdeu-se nos encaracolados neurônios do animal sapiente.