Talentosos, perfeitos, bonitos, cheirosos, charmosos e modestos:

quinta-feira, 21 de março de 2013

Mancha no tempo


Virou para o lado e deu de cara com Machado de Assis. Do outro lado, estava Carolina Augusta. Quando caiu em si, percebeu que era, então, o filho que não havia sido.
Era triste por não ser; via-se invisível - mas, na verdade, era bem visível: era uma mancha na História. Fugiu desesperado e foi - sem ninguém pedir - ser gauche na vida. De súbito, parou num teatro inglês. Sentava ao lado de Elisabeth I. Era o fruto do ventre real que nunca amadurecera! Mais uma vez, era um fardo no tempo. Ao menos desfrutava Shakespeare legítimo. Belíssimo! Nauseabundo! Sentiu-se de novo culpado. Sua figura principesca representava a paz entre Montecchio e Capuletos. Nenhum jovem morrera aquela noite.
Correu, vagou no vago, chorou. Debaixo da ponte abobadada, sentiu o tremor do chão. Avisou Mestre Baldini, que fugiu a tempo. AAAH! Salvei o perfumista de Paris! Num ímpeto de raiva, liberando os demônios que o choro não foi capaz de expelir por si só, com uma estaca rija de madeira, golpeou um homem na cabeça. Era Hitler. Foi fatal. Imediatamente, sentiu seu crânio perfurado pelo projétil que Geobbels não tardou a lançar mão. Com uma bala a menos na História, John Lennon estava vivo.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Fardo

Minha coluna dói. Como um arranha-céu desmoronando, me distorço. Os ossos crescem, os ossos encolhem, quebram, despedaçam. Poros se abrem, cálcio se vai. Meu fardo de ser eu me entorta a cara.
O passado se estende atrás de mim, como um tapete vermelho - vermelho cada vez mais vermelho, cada vez mais sangue. O passado está se movendo, devorando-me, tornando o futuro mais distante.
Não há graça em andar para frente sendo puxado pelo redemoinho. Prefiro cair. Deixa pra lá. Parar de parar de chorar, começar a começar a aceitar: tudo passou; eu é que não passo.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Centro-Oeste mestiço

Morria de medo o tal José de Santo Cristo. Ele viu seu primo partindo, o corpo esguio sumindo no meio do verde da fazenda, se embolando com o sol e com o horizonte. Preferiu o marasmo, preferiu o fugere urbem, mesmo que nunca tivesse pisado num asfalto. Tinha sua terrinha, tinha sua vaquinha malhada, e aquilo lhe bastava. 
Íntegro, nem quando a tuberculose lhe assolou deixou de ir às missas. Foram-lhe tiradas a inocência e a pureza divina somente na lua-de-mel. O próprio pároco lhe pedia conselhos, via-o como exemplo. Da Vinci desenhou somente o corpo do homem perfeito; porém, se fosse possível transpor caráter para o papel, José posaria sem delongas.
Ouviu dizer que seu primo se envolvera com atividades que não condiziam com o tipo de criação que haviam tido no campo. Casto, correto, nunca botara fé no primo - o delinquente, degenerado da família Santo Cristo. Seu travesseiro era testemunha do quanto pediu a Deus que iluminasse o familiar, que na capital arriscava a vida.
Viveu como se fosse viver pra sempre, nunca com pressa, sempre com aquele o enrugado sorriso que iluminava as ventas. Viu filho nascer, viu filho morrer, viu-se morrendo, também. Padeceu de velhice. Desencarnou e não ganhou festa na fazenda, nem bandeirinhas, povo a aplaudir, sorveteiro, muito menos câmeras de TV. Morreu como viveu: sem aventuras. Não fez mais do que plantar alface. José de Santo Cristo não virou música, José de Santo Cristo virou adubo.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Títulos também não são necessários

Danem-se o mundo gramatical, o dicionário, as orações! Nada é realmente necessário para a compreensão nesse antro de códigos. O olho no olho, o corpo no corpo, o pensamento e a telepatia: isso, de fato, faz o globo girar, não o jornal. Ouso ser melhor que Marinetti!
Podemos começar, então, a excluir o que trava, o que impede: o infeliz ponto final o ponto final é a coisa mais detestável possível! Pior que ele, talvez, somente a exclamação argh, eu tenho que sinalizar minha empolgação? e a dúvida também, meu Deus e que porcaria de maiúsculas deixem-me escrever brasil, atântico, zé das couves ah, chega de vírgulas capachas do ponto final morram os acentos nao preciso de silaba tonica se eu nao tiver que codificar chegadeespaçosvamosacabarcomasletr

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Musicismo

Da música sai todo o som
dos acordes, da clave, do tom
da avenida, da vida, então.

Na música se acha a chave
da escala, da pausa, da clave
do sentir o sentir mais suave.

Vem num canto gregoriano
com voz, violino, piano
Já sabendo até que a última rima
canta um nome cotidiano.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Manifesto Zacaria

Queremos ser Zacaria. Queremos ter Zacaria. Queremos Zacariar.
***
Vamos nos encher de anglicismos para afirmar nosso Zacariaway to Heaven, pois nosso modo de vida tem que ser Zacaria, e nosso Zacaria tem que levar ao céu. Em inglês, sim, porque vamos de Apollo 11 - não importa se verdadeiramente ou não - chegar ao objetivo-mor, dando um grande passo para a humanidade. A humanidade precisa de Zacaria, a humanidade precisa de prosa, verso, acorde e coreografia, todos dançando, cantando e recitando a ideia.
***
Ser Zacaria é observar uma andorinha num abutre e uma suculenta maçã numa mamona.
Ser Zacaria é abraçar o mendigo e beijar o leproso.
Ser Zacaria é correr pela Arcádia, nu, e se cobrir de palmeiras e dentes-de-leão.
Ser Zacaria é jogar capoeira com um japonês e comer acarajé de hashi.
Ser Zacaria é abrir a mente para o mundo e destroçar caminhos traçados.
***
All we are saying is give Zacaria a chance.
Zacaria, Zacaria, über niemand in der Welt.
Allons enfants du monde, le jour de Zacaria est arrivé.
***
Zacaria é fruta colhida do pé
Zacaria é amor da mãe para o filho
Zacaria é razão untada em fé
Zacaria é abraço cantando estribilho
Zacaria é rico lembrar que é Zé
Zacaria é trem que não sai do trilho.
Zacaria é ir até que acabe o brilho, que suba a maré, que aperte o gatilho, o mundo acabar.
Queremos ser Zacaria. Queremos ter Zacaria. Queremos Zacariar.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Se as chinelas

Se suas chinelas falassem...
Ah, que bobagem!
Que mais contariam
Senão que sorriam
Quando tu as calçava?

Se suas chinelas andassem...
Ah, que bobagem!
Aonde mais iriam
Se nem mesmo saíam
Da sua morada?

Se suas chinelas amassem...
Ah, que bobagem!
Pra quê chorariam
Às vezes morreriam
De boca calada?